sexta-feira, 16 de junho de 2017

«Fazemos sempre assim ...»

Há (ou «à», como se escreve por aí) bem mais de 10 anos (em 2004), quase numa outra encarnação, estava eu a acompanhar o processo legislativo do governo, na relação entre o Ministério da Justiça e a Presidência do Conselho de Ministros (claro que, pelo meio, havia sempre que cuidar das exigências e sensibilidades do todo poderoso Ministério das Finanças).

Um dos processos que acompanhei, volta e meia, vem-me à memória. E nem é por ter sido especialmente complexo sob o ponto de vista técnico – tratava-se de criar os diplomas e demais documentos legais que conduziriam à criação do então novo Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo. Nesse processo inaugurava-se um modelo de cooperação do Ministério da Justiça com a Santa Casa da Misericórdia do Porto, o que implicava atender a algumas especificidades, designadamente com a celebração de um protocolo.
A mim cabia-me rever os documentos que os serviços produziam, fazendo-os seguir, com as correcções e explicações que entendesse necessárias, para a Reunião de Secretários de Estado, primeiro, e para a Reunião do Conselho de Ministros, a final.

Esta conversa não tem interesse nenhum. Só aqui a trago porque, num pormenor ridículo, ilustra bem o subconsciente centralista que atravessa todo o nosso funcionalismo (dos serviços aos governos).

Quando me preparava para dar o ok aos documentos, deparo-me com uma cláusula (já não sei se era um artigo no projecto de decreto-lei, se uma cláusula na minuta do Protocolo) que sob a epígrafe «Conflitos» determinava a vinculação específica à comarca de Lisboa como o foro para resolução dos conflitos que eventualmente eclodissem. Traduzindo-se: estabelecia-se que, em havendo algum conflito, o tribunal competente seria o de Lisboa.

Lembro-me de pegar no telefone, ligar ao técnico que enviara aqueles documentos e perguntar-lhe se não haveria ali uma gralha. Porquê uma cláusula deste tipo e, sobretudo, porquê Lisboa? À pergunta acrescentei: o Estabelecimento Prisional era em Santa Cruz do Bispo, o Protocolo era com a Santa Casa da Misericórdia do Porto e o Ministério da Justiça e a Direcção Geral dos Serviços Prisionais eram de todo o país (lembro-me de dizer assim).

A resposta do lado de lá foi eloquente: «nós fazemos sempre assim».
E nesse «sempre assim» estava todo um programa. É que é sempre assim.


PS. Escusado será dizer que aquele artigo ou cláusula foi obviamente eliminado por mim. E não me recordo de voltar a ser confrontado com artigos ou cláusulas discriminatórias e sem qualquer sentido como aquela. Pelo menos no que me coube (que era poucochinho) deixou de ser «sempre assim».

#Escritório

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