sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Carta aberta pelo Interior (para quem a quiser ler)

Passou um mês.
Têm sido muitas as iniciativas de solidariedade a favor do interior e das pessoas afectadas pela tragédia dos incêndios. Mais ou menos institucionalizadas, mais ou menos formais, mais ou menos eficazes. Não podemos deixar de valorizar esse esforço e essa entrega de tantos.

O meu tema, contudo, é outro. É o mesmo, mas é outro.
Refiro-me ao interior. A esse interior exposto e abandonado. Que está à mercê da sorte porque já quase não há quem dele cuide. É um problema do Estado? Claro que é. Mas é sobretudo um problema de todos. Porque o Estado «surfa» sempre a onda que, no curtíssimo prazo, lhe convém financeira e eleitoralmente. E, por nossa causa, o interior não lhe convém.

Eu, sinceramente, ainda pensei que o trágico 15 de Outubro (para mais, depois de Pedrógão) gerasse em Portugal um sobressalto consequente e radical em favor do interior abandonado. Um mês passado – apenas um mês depois – constato que era vã a minha esperança.
O que aqui digo sempre direi (mesmo que possa prejudicar os meus próprios e comezinhos interesses de menino instalado, de menino da cidade e do litoral). E não o digo por alinhamento ou conveniência. Porque há matérias (claro que há) que não são de esquerda ou de direita. Esta, aliás, padece do mal oposto – o de não ser de ninguém.
Dispensarei meias palavras.
A luta pela resistência do interior (acho que devemos colocar a questão em termos quase de sobrevivência), continua a não merecer mais do que desprezo (meio disfarçado, mas desprezo).

Ou bem que há uma mudança de hierarquias brutal, com consequências radicais no plano da afectação dos recursos financeiros do Estado, ou não vale a pena perder tempo.
O Estado e as populações – aquele com estas, estas por causa daquele e vice versa – foram desertificando uma parte cada vez mais extensa do nosso território. Pois se as populações não podem ser coarctadas (e naturalmente desrespeitadas) na sua liberdade de partir, ao Estado não assiste – não pode assistir – essa bonomia e tolerância.

Por estes dias, o debate público é dominado pela necessidade de reconstrução de casas que foram consumidas pelo fogo, pelo esforço de recuperação de pequenas indústrias e empresas (e até de parques empresariais completos) que representavam muitos dos postos de trabalho vigentes no interior. Eu não concordo. Porque eu não posso concordar com um modelo de intervenção que se baseie na ideia de reposição da situação anterior aos incêndios de 15 de Outubro. É preciso muito mais do que uma mera reposição.
Sem esforço, sem estudo rigoroso (como gostam tanto de apregoar), sem eufemismos, qualquer um de nós consegue apontar o caminho. Vários caminhos. É preciso recursos? Claro. Muitos! Mas o caminho é tão claro que custa aquele discurso da reposiçãozinha.
Eu dou exemplos (remato à baliza, para usar uma expressão que todos entendem).
É urgente o regresso do Estado. Tribunais, escolas, centros de saúde, serviços de finanças, postos dos correios, centros de emprego, postos da GNR. O Estado, que desistiu do interior, tem de regressar para ajudar no regresso das populações.
Pois onde não há Tribunais não moram advogados e solicitadores, oficiais de justiça, procuradores e juízes. E respectivas famílias.
Pois onde não há escolas não moram professores e funcionários. E respectivas famílias. Pois onde não há centros de saúde e hospitais não há médicos, enfermeiros, auxiliares de saúde. E respectivas famílias.
Pois onde não há serviços de finanças, postos de correio, centros de emprego e postos da GNR não há funcionários do Estado. E respectivas famílias.
Pois onde não há nada disto não há restaurantes, lojas, empresas, pessoas. E respectivas famílias. Que justificam, por sua vez, aqueles Tribunais, aquelas escolas, aqueles centros de saúde e hospitais, aqueles serviços de finanças, postos de correio, centros de emprego e postos da GNR.

O regresso do Estado é urgente. É obrigatório. E pode e deve passar por serviços centrais do próprio Estado. Serviços como o Instituto Nacional de Estatística, como o Tribunal de Contas, como o Instituto do Mar e da Atmosfera e – já agora – como a anunciada empresa pública das florestas (no fundo, serviços do Estado «a sério», que podem e devem funcionar no interior do país).
É também urgente olhar para o território como um bem a cuidar. Não vale a pena teorizar muito. Basta olharmos para os quarteis dos bombeiros e para os postos da GNR do interior do país. Estamos a falar de quarteis e de postos da GNR que «cobrem» enormes áreas territoriais. Enormes e sensíveis. Deviam ser os quarteis e os postos mais equipados, com mais activos e com maior e mais competente capacidade operacional. Pois estão no extremo oposto. Os meios são poucos, estão obsoletos e não têm capacidade de resposta (naquele fatídico 15 de Outubro, lembro-me do relato de dois autotanques inoperacionais no quartel de bombeiros de Tábua, por exemplo, e vi dois jipes de combate avariados à porta do quartel de Vila Nova de Tazem). E se olharmos à GNR os militares são pouquíssimos e sem a mais pequena capacidade operacional (basta ocorrerem dois incidentes em simultâneo em duas freguesias vizinhas que é certo que uma delas não terá resposta). Insisto. Não vale a pena teorizar muito. É mesmo assim.
No domínio das infra-estruturas, também há todo um mundo pela frente. É indispensável dotar o interior de redes de comunicações de qualidade (internet e móveis) e de transportes de qualidade entre concelhos. Há que desenvolver um programa de reflorestação em grande (enorme) escala, com o predomínio de árvores comprovadamente não combustíveis, e em que serão incluídas espécies animais adequadas à flora a plantar. E este plano deverá passar também pela criação (não é no papel nem na lei) de parques nacionais devidamente infra estruturados, com guias profissionais , com fiscais preparados, com profissionais de manutenção e de limpeza (parques que caricatamente não fiquem inacessíveis ao primeiro espirro de neve!). E, naturalmente, um plano de recuperação da originalidade das nossas aldeias – muitas das quais com potencial para integrar a rede de «aldeias históricas».
Em suma, era mesmo preciso um plano global, de fundo, ambicioso. Não para recuperar o que o 15 de Outubro nos levou. Mas para inverter o abandono. Para relançar o equilíbrio do país, sem nos vergarmos ao estafado efeito spill-over que tudo justifica na capital e no litoral. Um plano para, em boa verdade, projectar o futuro.
Não há dinheiro, estarão a pensar em tom adversativo.
Há. Claro que há. Então não há?
Quando olhamos às manchetes, aos anúncios e aos orçamentos, vemos que há. Muito até. Vemos devoluções de mais de 1000 Milhões de Euros. Vemos redes de metros em Lisboa e no Porto a expandir. Vemos terminais portuários. E vimos estádios e «Expos». Vimos pontes e auto-estradas. Há dinheiro. Falta é vontade a sério. Se quiserem um slogan, falta interiorizar o interior. Aquele interior que não dá votos. Aquele interior que não cumpre os critérios estritos e curtos de racionalidade económica (ou economicista). Mas aquele interior que nos justifica e que temos de honrar.

#Escritório

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