quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Distraído no Natal

Saio de casa, ligo o carro e sigo pelo caminho de sempre, pelo cruzamento de sempre, pelo semáforo de sempre. Por instinto (deixem-me culpar o instinto) desejo evitar o costumeiro “não tenho nada” (normalmente reforçado por uma expressão qualquer, pouco natural e nada convincente). De cada vez que o desejo não se cumpre e o confronto se dá, nem sempre lhe respondo com o “não tenho nada” e lá lhe entrego os 50 cêntimos que me sobram (sobrar é o verbo justo, não vale a pena romancear). Mas a regra é o “não tenho nada”.
Aquele agoiro pelo verde no semáforo que me há-de safar do confronto com a necessidade, é mesmo expressão de cobardia. E pior. De indiferença. E - ainda pior - de total habituação.
A cada confronto, nunca se me impôs. Nunca me destinou senão compreensão ou gratidão. E eu, cobarde, só peço que o semáforo esteja no verde...
Ontem, permeável à quadra e incoerente (sou um fruto exemplar dos tempos) desejei que o verde demorasse. Queria encher-lhe a mão com um magnânimo euro. E quando o fiz nem tempo tive para respirar o orgulho espúrio que me animava. Do banco de trás, na voz do meu filho que, com 3 anos, quer saber e perceber tudo, só ouço “quem era pai, era o Menino Jesus?”.
Sobressaltado murmurei para mim mesmo. Nem sei quem é, como se chama ... mas era. Era o Menino Jesus.
Eu é que ando distraído.


#Jardim

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Coitados dos coletes amarelos

Nesta coisa das manifestações e iniciativas políticas (no seu sentido lato) sempre invejei a capacidade de parecer.
 
O maior especialista talvez seja a CGTP / PCP. Mas o BE, ao seu estilo, também cumpre muito bem.
Aquelas manifestações na avenida da liberdade, por exemplo, são um verdadeiro tratado. Alinhamento perfeito. Faixas sustentadas por meia dúzia de manifestantes (logo aí parecem uns 100), umas a seguir às outras sem que ninguém ouse ocupar o espaço entre faixas. Ritmo milimétrico (não vá o espaço entre faixas encurtar ou alongar-se, ao ponto de converter a aparência de 100 na realidade de 6). E no fim o anúncio de um número impressionante de manifestantes que, pela imagens criadas, ninguém tem paciência para discutir.
Também louvo aqueles encontros políticos em espaços bem delimitados, com 20 ou 30 cadeiras distribuídas a regra e esquadro, e bandeiras soltas que valem por 10 pessoas cada uma. Programa devidamente preenchido com declarações, gestos e tom de voz sempre igual (Louçã fez notavelmente escola).

Neste país da difícil militância, da inércia cidadã (desculpem, disse «cidadã» tipo Livre), da sofreguidão por 3 minutos de boas imagens no telejornal acompanhadas de um relato trabalhado entre os camaradas e as redacções (ia dizer quase só camaradas …), há de facto quem «as saiba fazer».
 

Pouco importam os absurdos e as caricaturas. A verdade é que, sem CGTP / PCP, sem BE e afins – no fundo, sem os padrinhos certos – coitados dos coletes amarelos.

#Escritório

Desculpa, Manel


Não fora a fotografia icónica com o Presidente dos afectos e nem eco teríamos deste homem a quem a casa ardeu e que, passado mais de um ano, partiu sem que a sua casa fosse reerguida.
O testemunho que posso dar sobre as casas que, impotente, vi arder naquela noite louca de 15 de Outubro, é o de que nenhuma (nenhuma!) está reerguida.
É desolador (saiu-me desolador, mas já nem encontro palavras justas).
Para além do país do défice histórico, da devolução de rendimentos, do virar de página … que país temos? Que país somos?
Nem sei bem como nem porquê mas ocorre-me pedir desculpa. Ao Manel e aos tantos Manéis que sobrevivem sem país.

#Jardim
#Escritório

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Rui Rio. Hoje como ontem.

Com a chegada, em 2001 (caramba, já quase passaram 18 anos!), à presidência da Câmara Municipal do Porto, passei a «acompanhar» mais de perto o Rui Rio político, líder e governante. Dele pouco mais saberia para além da «teimosia» enquanto Secretário-Geral do partido no consulado de Marcelo Rebelo de Sousa.

Pois. Rapidamente percebi que Rui Rio estava nos meus antípodas. E por isso nunca fui capaz de participar das suas maiorias eleitorais. Mesmo quando comungava dos propósitos, logo me sentia afugentado pelo processo.

Quando, há pouco mais de um ano, se perfilou para concorrer à liderança do PSD, a previsão (a preocupação, era mais isso) de que seria uma péssima escolha não se baseava numa especial capacidade de ler e prever politicamente. Bastava conhecer a personalidade que se vem confirmando.

Já com 10 meses de liderança do PSD, nada mudou verdadeiramente. Está lá tudo. Hoje como ontem.
Em 3 de Outubro de 2017 escrevi:
Rui Rio
Sob o ponto de vista político estou demasiado distante de Rui Rio.
Do que lhe conheço e ouvi sobre a organização do Estado, sobre o sistema judicial, sobre o pluralismo e o funcionamento das instituições democráticas, sobre a cultura (não apenas a cultura democrática, mas também a propriamente dita), sobre os costumes e os valores, sobre a mundividência, a visão e a postura na política, estou, repito, demasiado distante de Rui Rio.
Seria (será?) uma péssima escolha para a liderança do PSD.

#Escritório

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O que é urgente

Já não me consola (nunca consolou, em boa verdade) a ideia que vamos tendo de que as tragédias acontecem sobretudo aos outros e não à nossa comunidade e país. Os acidentes impressionantes, as histórias caricatas, se não mesmo macabras, assolam os outros (uma universidade nos Estados Unidos, um acampamento na Noruega, uma ponte em Itália, um desabamento no Brasil, e por aí fora).
 
Nos dias que passam, os incêndios, as pontes, os desabamentos, levam-nos os nossos e tocam-nos à porta.
O que talvez ainda não tenha mudado - e, ao que se sabe, impressiona especialmente na tragédia de ontem com o helicóptero do INEM - é que o nosso estado de alerta ou de sobreaviso ainda é tributário daquela ideia de que só acontece aos outros.
Em Pedrógão como nos incêndios de 15 de Outubro, no desabamento da estrada de Borba como ontem na queda do helicóptero do INEM, a reacção diz muito de como ainda nos vemos à prova de fatalidades.

A estrada da morte em Pedrogão não foi cortada a tempo porque ninguém estava devidamente alerta. A louca profusão das chamas a 15 de Outubro cavalgou livre e sem consciência colectiva horas a fio porque, nesse fatídico domingo, os comandos operacionais ou não estavam ou não comandavam. A estrada de Borba esteve em equilíbrio entre margens eloquentemente despidas, porque se confiou para além do limite que a urgência não se revelaria. E ontem, o primeiro telefonema para o 112 passou pela GNR local sem consequência e sem demais mobilização tendo decorrido mais de 2 horas até que se tomasse consciência da tragédia. Talvez não fizesse diferença. Talvez seja até mal comparado. Mas o padrão repete-se. E desta vez com a triste ironia de ser uma urgência relativa a um helicóptero e a agentes do INEM (um dos serviços de urgência mais relevantes).

É urgente (urgente aqui não é jogo de palavras) sermos capazes de cortar uma estrada num incêndio, de mobilizar os serviços num cenário de catástrofe, de percebermos que um helicóptero caiu com a prontidão do “minuto seguinte”.
 
Mais do que qualquer outra, essa seria a melhor homenagem a esses bravos que vivendo a salvar vidas ontem perderam as suas ao nosso serviço.

#Escritório
#Saladeestar

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

George H. Bush – o «homem sem qualidades» e o último que não era estúpido

Na longa reportagem que o Público deu à estampa sobre a partida aos 94 anos de George H. Bush – em que nos era contado quem foi e o que representou esse homem que, entre outras coisas, foi embaixador do EUA na China, presidente da CIA, 8 anos vice-presidente de Ronald Reagan, 4 anos Presidente dos EUA –, nessa longa reportagem do Público, dizia, as «gordas» com honras de primeira página e repetidas ad nauseam eram a de que partiu «um homem sem qualidades». Isso mesmo, «um homem sem qualidades». As aspas (também presentes na notícia e no destaque) talvez ali estivessem para não comprometer (como quem diz, era o que dele diziam). Mas era mesmo esse o destaque.

Confesso que me impressiona a ousadia do «homem sem qualidades», ainda que entre aspas e em citação. Dizer que é caricato, é curto. É que para lá da sua impressionante folha de serviços estaremos sempre a falar do líder da ordem mundial contemporâneo da desagregação da União Soviética, da reunificação da Alemanha, no fundo, da consagração dos EUA como o vencedor da Guerra Fria. Tenho a sensação (se não mesmo a certeza) que muito ficamos a dever à sua magnanimidade, moderação e perfil genuinamente democrático na hora da vitória. Nada mau para um «homem sem qualidades».

Ainda sobre George H. Bush (o Bush pai, como depois foi sendo conhecido) talvez valha a pena relevar um dado sintomático (não é bem um dado, é mesmo uma «qualidade», já agora arrisco na palavra).
Foi o último presidente republicano dos EUA que passou relativamente à margem do desprezo e altivez (que vem evoluindo para o ódio) da opinião publicada dominante na Europa. Depois tivemos o Bush filho, e agora o Trump ainda em exercício. A internet, os blogues, e, sobretudo, as redes sociais por nascer talvez expliquem. Talvez. O que sei é que foi mesmo o último presidente republicano que não nos venderam insistentemente como estúpido e como tendo sido eleito por estúpidos. Foi, portanto, o último presidente republicano que, estupidamente, não fomos obrigados a odiar.

#Escritório

terça-feira, 27 de novembro de 2018

A coragem e o herói (e a logística)

Com excepção do primeiro, o nascimento de um filho traz consigo um bruaá (escreve-se mesmo assim) social que anda muito à volta da ideia de coragem e de heroísmo. Que coragem, nos tempos que correm!, repetem-me. És um herói!, também me dizem. E, mais recentemente, interessam-se muito com a logística. Sim, com a logística. E como é de manhã para sair de casa? Imagino a logística das refeições e das roupas! (logística é mesmo um termo repetido).

Não sei bem como responder. Sinceramente não sei. Porque não é a logística que me ocupa (quer dizer, chateia-me quando obriga a mudança de carro, pelas poucas alternativas e a preços escandalosos). Nem me ocorre essa ideia de coragem (nem sei de que coragem falam). Muito menos o heroísmo (herói em quê exactamente?).

Eu por acaso o que sinto (e acho que nunca consegui explicar) é que é tudo muito simples. Simples no sentido de descomplicado e pouco elaborado. E a simplicidade, por paradoxal que pareça, gera confiança.

É certo que há muita coragem, que não a minha. E que ainda há heróis, que não eu. Porque se posso dar algum testemunho (dizer “testemunho” é presunçoso...) é que, sem mérito nem arte, talvez se explique (se me perguntam por uma explicação) por aquela simplicidade e confiança. Talvez seja isso.

#Saladeestar

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Deputados adultos

Aí pelos meus 13 anos passeava-me com um molho de folhas (uns formulários todos iguais) na mochila. Tenho ideia de ter recorrido a esses formulários pouquíssimas vezes. Já então era crítico da necessidade dos «formulários» (ainda que os percebesse) e apostava na sua extinção na idade adulta (sublinho, adulta).
Quando, por estes dias, um coro de «virgens ofendidas» ocupou o espaço mediático indignando-se com a falsa presença do deputado José Silvano do PSD numa reunião plenária da Assembleia da República (acompanhava à mesma hora o líder do seu partido numa reunião política em Santarém) lembrei-me do molho de folhas na minha mochila de adolescente (já lá irei). Claro que todo o episódio é pouco edificante – a ideia de um deputado produzir falsas declarações (pessoalmente ou em conluio) é suficientemente degradante e ilustrativo. E o solidário silêncio da esmagadora maioria dos seus pares (de uma ponta à outra do hemiciclo) é a demonstração cabal de como, afinal, os pactos de regime são possíveis.
O meu ponto não é, contudo, a falsa presença, a explicação atabalhoada, a desvalorização nervosa, a contradição eloquente, o silêncio de regime, e o despudor da conclusão final. Francamente nem eu nem ninguém fomos assaltados por um sentimento de surpresa. E, já sem remorso, confesso-me anestesiado. Quem pouco espera pouco se surpreende.
Convém, no entanto dizer (e é estranho que ninguém com voz o diga) que o desdém que cada vez mais destinamos a quem nos representa alimenta-se muito das nossas contradições e da exigência infantilizada que reservamos ao exercício da política e à dignidade da representação política.
Quando olho ao regulamento a que os nossos deputados se subjugam não consigo evitar a memória do “molho de folhas” na minha mochila de adolescente.
Que sentido faz - penso tantas vezes - aquele hemiciclo com 200 ou mais deputados, em debates sectoriais, em que não mais de meia dúzia (se tantos) participam? E porque se há-de medir o exercício da representação pela mera presença em plenário? E mesmo o trabalho das comissões (os deputados refugiam-se muito na invocação do trabalho nas comissões) é assumido por três ou quatro com os demais quinze ou vinte a folhear papéis ou a passar o dedo pelo telemóvel. E se é assim - e “gostamos” tanto de o bradar indignados - que sentido faz fingirmo-nos exigentes com a presença de todos os deputados naquelas sessões?

Eu não me revejo em nada disto, devo dizer.
Eu tenho muito mais respeito pelo exercício da representação popular no parlamento. Eu exijo muito mais do que a rotineira e infantil presença no hemiciclo, na comissão ou no que for. E assusta-me a presunção de incumprimento que a instalação de um sistema de controlo de presenças pressupõe.

Não meço a minha posição nesta matéria. Um deputado não devia estar sujeito a qualquer controlo de presenças. A ausência de um deputado deveria gozar da presunção de que está em trabalho político como é próprio de um parlamentar que representa cidadãos. Os deputados tanto deveriam estar no parlamento como deveriam estar no seu círculo eleitoral. Sem qualquer sistema de controlo. Como adultos que são, eleitos democraticamente, e com a dignidade que essa legitimidade eleitoral lhes confere.
E mais. Este modelo livre de exercício do mandato (em coordenação com cada grupo parlamentar, naturalmente) era muito mais justo, servia melhor a urgente aproximação entre eleitos e eleitores, promovia até a coesão territorial (pela presença disseminada e mais constante dos representantes nacionais nos círculos regionais). E trazia ainda um suplemento de justiça àqueles cidadãos que se predispõem a partir de armas e bagagens para um mandato de quatro anos em Lisboa, não sendo necessário (nem recomendável) permanecer em Lisboa toda a semana e todas as semanas (os mais de 50 deputados de Lisboa não terão a noção de como é diferente e exigente um cidadão com a sua vida profissional sedimentada predispor-se à tal mudança de “armas e bagagens”). Às tantas teríamos outros deputados. E suspeito que melhores.
E o que tem o molho de folhas na minha mochila aos 13 anos a ver com isto? Nada. Ou tudo. Aquelas folhas eram formulários de justificação de faltas pré-assinados pela minha mãe que mos confiava (a mim e ao meu critério e responsabilidade) para quando precisasse (ou quisesse) faltar às aulas.
Tratamos os nossos deputados (e estes deixam-se tratar) como crianças a quem é preciso controlar as faltas e faltinhas que nem a minha mãe quando eu tinha 13 anos...
Eu gostava de ter deputados (tratados como) adultos.

#Escritório

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Brexit dos garotos


O que impressiona mais neste caos político que se vive no Reino Unido é que ele foi inventado (inventado, literalmente) por ímpetos de mero cálculo e jogo político.
A crise, verdadeiramente, não existia. Ela deve-se exclusivamente a duas personalidades (mais à primeira) que ocuparam ou ocupam o tal número 10 de Downing Street.
A cartada do referendo, jogada por Cameron, e a cartada seguinte das eleições antecipadas, jogada por May, são os exemplos mais chocantes (no sentido gráfico do termo) de como dois Primeiros-Ministros jogam um país na dúvida e na ansiedade.
Há muito de presunção britânica em cada um destes protagonistas. E essa presunção, sempre cheia de pose, é no fundo uma garotada.
Se fosse um jogo, era lá com eles. Mas é um país. Nas mãos de garotos.

#Escritório

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O Polígrafo


É engraçado que o anúncio do “Polígrafo” - o novo projecto jornalístico (creio que se pode dizer jornalístico) que se dedicará a sindicar as informações e as declarações dos políticos, para, no fundo, pôr a nu as fake news e as declarações pouco rigorosas que circulam por aí (especialmente nas diabólicas redes sociais) - gerou a mesma reacção entre esquerda e direita, conservadores e liberais, moderados e reaccionários, interessados e distantes. Todos confiantes que, a singrar o dito Polígrafo, e cumprindo este competentemente a missão a que se propõe, finalmente será desmascarado, sem apelo nem agravo, o “outro lado” e os seus protagonistas.
Por mim só digo que se correr bem, vai ser bonito.

#Saladeestar