domingo, 28 de outubro de 2018

O caldo

Preguiçosa e presunçosamente olhamos à distância para os triunfos eleitorais de Trump, de Bolsonaro, de Marine Le Pen, de Salvini, de Orban, dos gémeos Kaczyński, e por aí fora (mesmo que não os possamos nivelar pelo mesmo registo).
Resolvemos todos esses fenómenos com «ismos» e «istas» simplificadores e confiamos que por cá a «cultura democrática» é de filigrana. Esses loucos eleitores (mesmo que de todos os extractos e origens, não nos enganemos) são fascistas, racistas, xenófobos, securitários. Nós – pura raça lusa – somos tolerantes, interculturais, genuinamente democráticos …
Pois, esqueçam. Somos iguais. Apenas estamos um pequeno passo atrás. Ainda não esgotámos a paciência (ou consentimos que gozem mais connosco, o que não é bem uma qualidade).

A antecâmara do sucesso de um Bolsonaro – o caldo, prefiro chamar-lhe «o caldo» – vem sendo minuciosamente condimentado. O «ponto de rebuçado» em Portugal já terá estado mais distante.
Quando olhamos à sucessão de escândalos financeiros - aos buracos do BPN, do Banif, do BES, aos calotes da Caixa. Quando sentimos a desproporção do Estado impiedoso cobrador vs Estado pagador e prestador de serviços essenciais. Quando, sem pudor e sem freio, assistimos à transumância de génios da gestão (sempre os mesmos há dezenas de anos) entre empresas públicas (ou como se fossem) monopolistas (ou como se fossem) ou à transumância (transumância é mesmo a palavra justa) de eleitos entre as listas, entre as entidades, entre os lugares e as cadeiras dos partidos no Estado. Quando ficamos com a sensação (ou a certeza) de que nos destinam uma permanente reserva mental, que tudo não passa de um jogo de comunicação, senão mesmo de protecção recíproca entre protagonistas ao mais alto nível e em temas muito sensíveis (as mortes nos incêndios de 2017 talvez seja o caso mais gritante, mas também serve o caso de Tancos).
Quando nos cercam com o politicamente correcto, em que nos negam a liberdade de pensar em público sobre tensões raciais, religiosas, morais. Quando nos controlam o vocabulário (caros e caras, cartão de cidadania, e afins…).
Quando nos impõem o pensamento único – como derivada do cerco do politicamente correcto – em que qualquer opinião diferente em matérias fracturantes é imediatamente catalogada de xenófoba e fascista (reparem que o casamento gay foi aprovado há 8 anos com os votos desfavoráveis de uma maioria de deputados de direita e alguns do PS, o aborto foi aprovado há 11 anos com 40% de votos contra no referendo, e hoje quem ousa sugerir revisitar os temas é achincalhado!)
Quando nos abastardam a liberdade individual (é mesmo de liberdade que falamos), porque se intrometem na nossa alimentação, nos nossos hábitos sociais (contraditoriamente não nos deixam beber ou fumar aos 16 anos, mas acenam-nos com a mudança de sexo). Quando nos querem substituir na educação dos nossos filhos, negando-nos a liberdade de os orientarmos de acordo com os nossos valores, de gerirmos a sua inocência e de sermos os «pais» deles (que somos!). Quando o palco está sempre cativo dos mesmos que, de facto, falam a mesma linguagem porque habitam no consenso dos temas fracturantes, sem reparar que são cada vez mais os que os não percebem, não se revêm e não lhes ligam.

Quando tudo isto (e muito mais) – a que se junta a sensação de ausência de alternativa ou de diferença relevante no quadro das propostas convencionais – é o mundo que nos é proposto e imposto, pois está formado o caldo perfeito.
Já faltou mais. Já faltou mais para o dia em que quem não tiver tento na língua, não se subjugar a este caldo e tiver coragem, comece a atrair este exército adormecido. Pouco interessará o que se disser ou defender desde que soe a coragem, a murro na mesa e, no fundo, a sensação de libertação.
Ainda vamos a tempo. Mas não me parece que falte muito. Porque o caldo está mesmo quase «perfeito».

#Jardim

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Tenham vergonha por amor de Deus!


Eu tenho mixed feelings relativamente ao que deve ser uma boa decisão sobre o tema da ala pediátrica do São João e das condições em que são acolhidas e tratadas as crianças com doenças oncológicas.
Nunca percebi verdadeiramente, sob o ponto de vista administrativo e de gestão do sistema, qual a articulação entre o São João e o IPO (que fica paredes meias e que acolhe também crianças). Também nunca percebi – na mesma lógica administrativa e de gestão do sistema – em que posição figura o novíssimo centro materno-infantil (pensando especificamente na vertente infantil). E, finalmente, nunca percebi o que determina que umas crianças sejam tratadas numa instituição e outras noutra (quando a patologia e área de residência são as mesmas). Nunca percebi (embora suspeite das eventuais razões) e aqui fica confessada a minha ignorância.

Mas há uma coisa que eu percebi. Que sempre percebi muito claramente, aliás. É que o Estado e os governos (e este em concreto) vivem em permanente reserva mental, quando não mesmo em exercício de mentira despudorada, e alimentam-se de uma cobardia política revoltante.
Sim, cobardia. Porque se porventura entendem que não se justifica o investimento na ala pediátrica do São João (porque os mesmos serviços devem ser prestados noutras instituições) não o assumem – têm medo das manchetes do estilo «Governo deixa cair ala pediátrica do São João» ou não estão interessados em enfrentar a resistência das administrações implicadas.
Sim, cálculo e reserva mental. Porque vão alimentando o dossier sem verdadeiramente o tomarem em mãos – «vamos desbloquear», «será lançado o concurso», fazem aprovar (ou consentem a aprovação) no parlamento de «recomendações ao Governo sobre a prioridade do dossier».
E, sim, mentira despudorada. Porque asseguram há anos que o problema «está já a ser resolvido» e não está, como bem vemos.

Nada disto seria lamentável e revoltante se, pelo meio, não tivéssemos crianças e suas famílias, quais joguetes frágeis e inocentes, vítimas de cuidados e condições indigentes.

Aos gritos – aos gritos esganiçados! – rogo: resolvam o problema! Se é administrativo e de gestão, se é de egos entre instituições, se é financeiro ou mesmo político, não quero saber. Resolvam-no já. Porque o que não pode continuar é o sofrimento indigno a que vimos destinando crianças e suas famílias, precisamente no momento em que mais e melhor os devíamos cuidar.

Tenham vergonha. Por amor de Deus! (sim de «Deus», para que estale a polémica que a que interessa pelos vistos não estala …).



Notícia no JN:

#Escritório
#Saladeestar

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Hoje, no Jornal de Negócios


A ideia era dizer que mesmo num cenário de impostos altos talvez não fosse má ideia não mexer.
Passei os olhos pelos últimos cinco orçamentos e entre alterações (só tinha espaço para mencionar uma ou duas) e ameaças de alterações (que dão pelo nome de autorizações legislativas), o nosso ordenamento fiscal vive sob permanente tsunami.
Imaginem um qualquer residente no estrangeiro (um português emigrado, por exemplo) que está a pensar abrir um negócio em Portugal. Imaginem que o investimento pressupõe a aquisição de dois imóveis e meia dúzia de automóveis. E que, naturalmente, o investidor pretende vir viver para cá com a sua família.
Experimentem responder às perguntas mais elementares (taxa de IRC, reporte de prejuízos, tributação de dividendos, dedução de gastos de financiamento, tributação do património, tributação dos veículos, residência fiscal, agregado familiar, taxas de IRS, Segurança Social, e por aí fora). Vejam se a resposta que prepararam para 2014 serve para 2015. Se a de 2015 serve para 2016. Se a de 2016 serve para 2017. Se a de 2017 serve para 2018. E – antecipemos – se a de 2018 servirá para 2019.
Pois.

#Escritório

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Oh meu senhor, eu estou a cumprir ordens


Associamos mais aos guichets de serviços públicos. Mas volta e meia sai-me nos lugares mais improváveis.
A esperança que mantenho (e mantenho) nos homens decai sempre que, quais autómatos, me negam uma pretensão razoável com respostas secas do tipo «estou a fazer o meu trabalho» ou «estou a cumprir ordens».
Há duas coisas que me impressionam especialmente. A triste imagem que dão de quem dá ordens. E o não se darem conta de como se confessam prescindíveis (qualquer gravador barato dá conta do serviço).
E já nem falo do típico tom acintoso-antipático daquele «estou a cumprir ordens».
Se não é minimamente importante viro logo costas. De esperança diminuída, mas é o que faço. E foi o que fiz.

#Saladeestar

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Tomam-nos por estúpidos ...

A propósito das eleições no Brasil e de Bolsonaro – mas podia ser também sobre Trump, Marine Le Pen, o independentismo na Catalunha, e tutti quanti – o sentimento que me assalta repete-se invariavelmente.
Eu posso (ou não) estar nos antípodas destes personagens ou movimentos. Posso, por razões sérias ou menos sérias, querer o seu insucesso (ou sucesso) eleitoral. Posso até me estar a marimbar para a sua sorte e a do Brasil, dos EUA, de França ou da Catalunha.
O problema é que aqui no rectângulo negam-nos militantemente o «outro lado».
Não nos consentem os factos e o contexto dos dois lados para podermos interpretar. Vendem-nos a versão do preto e branco, do bom e mau, de Deus e do diabo. E douram um lado e só um.
Eu não quero dourados nem prateados. Eu quero os factos. Porque só com os factos é que eu posso perceber e formular o meu juízo.
Porque de certeza que há explicações que devíamos conhecer.
Porque raio milhões e milhões de americanos quiseram (e continuem a querer) o Trump na presidência em vez da Hillary? Porquê que quase um terço dos franceses se agrega à volta de Marine Le Pen? Porquê que os independentistas não têm uma maioria esmagadora nas eleições na Catalunha? E, agora, na disputa brasileira, porquê que o Bolsonaro não fica afastado liminarmente da segunda volta?
É que, reféns que estamos da selecção e da douta análise jornalística portuguesa, qualquer «outro» resultado é surpreendente e incompreensível. Tal como as coisas nos são apresentadas, a Hillary teria ganho com 99% dos votos, a Marine Le Pen já não teria voz, a Catalunha já seria um Estado independente com apoio de 99% dos catalães, e no Brasil o Bolsonaro seria reduzido a um dígito (com sorte!).
Não, meus amigos. Podem insistir no sectarismo jornalístico. Mas eu não alinho na versão de que os EUA, a França, a Catalunha, ou o Brasil, estão cheios de estúpidos. De milhões de estúpidos.
Às tantas o que é estúpido é insistirem nessa versão. E estupidamente não conseguem nem nos deixam (o que é mais grave) perceber o que se passa.
Não os tomem nem nos tomem por estúpidos!

#Escritório
#Saladeestar