Acho-me sempre transportado por uma áurea diferente.
Sinto-me em “missão”, cumprindo um dever e respondendo a uma chamada.
Começa no check-in. De entre os milhares de passageiros -
que se sujeitam ao controlo dos seus haveres e à apalpação de segurança - há
logo vários olhares que se cruzam. São os co-missionários em identificação
recíproca. O peito parece que incha nestes momentos.
Vamos descolar. Começou.
Destino Anfield (II)
- Já cá estás?
- Estou à espera do autocarro para Londres.
- Vem ter ao pub. Já nos juntámos oito.
E lá estavam os oito. A quem dei e de quem recebi os
primeiros abraços. Os primeiros pints. As primeiras projeções. Já está a ser
bom.
Destino Anfield (III)
Não sei porquê, mas nestes momentos há uma suspensão
colectiva da desordem. Ninguém corre o risco de falhar. Estamos todos, antes da
hora combinada, a tomar as primeiras cevadas da manhã. Cumpre-se a etapa
complementar da trasferta. Londres-Liverpool. Duas horas e tal que nem se
sentem (de tão preenchidas). Mata-se a sede (há sempre muita sede nestes
ambientes). Matam-se saudades (vimos de várias origens). Mata-se o sono também
(nunca é pior carregar alguma energia para a jornada exigente).
Destino Anfield (IV)
Cumpridos os trâmites clássicos - chegar ao destino,
fazer check-in no albergue, envergar a malha sagrada - segue-se a concentração.
Não no sentido de estar concentrado mas antes no sentido que mais gosto - o de
encontro e reunião. Somos imensos (de latitudes tão diferentes e algumas tão
imprevisíveis) mas todos entregues.
O prazer deste encontro (não escolhi a palavra “prazer”
ao acaso) é quase inexplicável. Estamos na segunda mão de uma eliminatória,
jogando fora depois de uns humilhantes 5-0 em casa. Não somos campeões há 4
anos. E vamos jogar na casa do Liverpool - essa Meca do futebol que é Anfield.
E mesmo assim não houve desmobilização. Talvez estejamos mais ainda - mais do
que seria normal. Pois, justamente, normal é a palavra errada. Não há padrão de
normalidade em tudo isto. A vontade e a disponibilidade desta gente não se
justificam num quadro de normalidade.
Destino Anfield (V)
Richmond Pub, Williamson Street, Liverpool. Assentámos
arraiais. Encontrámo-nos e reencontrámo-nos. Ensaiámos o que havia a ensaiar. E
pusemos os rins a funcionar a um ritmo alucinante (faço-me entender não faço?).
De meia dúzia, no início, passámos a centenas. Aquele pub mais parecia um café
Velasquez, um café estádio, um Pião.
Acho que foi no Richmond que se confirmou que a prestação
em Anfield ia deixar marcas. Fomos felizes no Richmond.
Destino Anfield (VI)
Deixámo-nos ficar no Richmond e não seguimos na
“caixa”. Pudemos receber os retardatários da concentração. E pudemos confirmar
a afinação das gargantas e, inevitavelmente, quão bem funcionam os rins.
Vamos a pé ou de autocarro?
E que tal se nos misturarmos com os adeptos do Liverpool?
É isso. Vamos na carreira como se fôssemos de cá (estamos “bem dispostos” e
somos pessoas de bem).
Se foi boa opção? Se houve algum problema?
Talvez responda numa frase. Começou Anfield naquele
autocarro. A prestação que impressionaria os anfitriões viveu-se ali em
antecipação. Aquele “78” foi um ensaio eloquente. Já ali foi o fim do mundo.
Destino Anfield (VII)
Pausa. Agora não é sobre nós. Fomos e somos especiais.
Tudo bem. Já falarei do que se viveu naqueles 90 minutos em Anfield. Mas não
posso deixar de falar deles. Dos espaços deles. Da entrega deles.
Nunca vi nada assim.
Na cercania daquele mítico estádio mora o The Park (um
pub meio discreto que de fora não faz adivinhar o que está lá dentro). O The
Park é só um hino do amor ao clube, um templo da entrega ao clube, uma lição da
fidelidade aos que fizeram a história do clube.
Por uma porta lateral controlava-se a entrada. Pusemo-nos
na fila ainda sem saber se seria suposto consentirem a nossa ousadia. Quando
nos apresentámos na porta tivemos o primeiro sinal (podem entrar mas fechem os
casacos e guardem os cachecóis - aqui somos só “nós”). Percebemos e
respeitámos. E entrámos.
Que loucura! Que pub inacreditável! Enorme, apinhado de
adeptos ensurdecedores, com sinais por todo o lado da grandeza e da
singularidade deles, adeptos, e do clube (“We are Liverpool! Respect our heritage. Don't sing shit songs!” - lia-se no palanque ao fundo). Não dá para contar muito
mais. Só visto e vivido. Diria, ainda assim, que se algum dia sonhasse um lugar
para “aquecer” antes dos jogos teria ficado muito aquém daquele pub.
Respeito e admiração.
Destino Anfield (VIII)
De tão inebriado que fiquei no pub deles quase que perdia
o icónico “You'll Never Walk Alone” e a balada clássica da Champions (que ao vivo,
para mais a jogar fora e em Anfield, me deixou com pele de galinha, apesar dos
muitos agasalhos).
Não desilude. Anfield não desilude. Aquelas bancadas
carregadas de fiéis até lá acima. Aquelas malhas sagradas em formação alinhada (as nossas e as deles).
E aquelas vozes ensurdecedoras. Anfield não desilude, de facto. Mesmo não sendo
um estádio perfeito - é até bem limitado e incómodo - está ali, fiel às
origens. Fiquei com a sensação de que seríamos demais para o espaço que nos
destinaram. Mas até isso sabe a genuíno.
Destino Anfield (IX)
Não sei se leram ou ouviram. O que vou dizer não é nem
inventado nem exagerado.
Nós, adeptos do Porto, naquele canto bem arrumados e
apertados, demos um recital. Enquanto os nossos 11 cumpriam dentro das quatro
linhas, da bancada recebiam uma entrega incondicional e ensurdecedora como não
há memória.
Foi de tal forma que diziam de nós que estávamos em casa
(Anfield foi nosso, senhores!).
Não foi coisa pouca, devo dizer. Este jogo, mesmo num
contexto de eliminatória “resolvida”, tinha muitos riscos. Diria que a correr
tudo bem saíamos sem mácula. Pois a verdade é que foi melhor do que isso. Não só
não confirmámos nenhum dos riscos como saiu reforçada a confiança e a vontade
de sermos campeões.
Tenho para mim que o “Eu quero o PORTO campeão” ainda
deve estar a ressoar em Anfield.
Os aplausos sentidos que nos destinaram (do campo e das
demais bancadas) foram justos. Mas mais justo será que se atenda ao nosso
pedido. Eu quero o PORTO campeão!!!
Destino Anfield (X)
Estou com algum receio do que vou dizer. Pode soar a
blasfémia. Admito.
O regresso ao centro de Liverpool e o jantar depois do
jogo foram inacreditáveis. Ao ponto do meu coração balancear se lhe pedirem
para escolher “o momento” da trasferta (soa a blasfémia não soa?).
O que vos digo é que entre pints e mais pints, entre
mesas bem servidas para rechear os carecidos estômagos, entre cânticos e abraços,
viveram-se momentos que a história de cada um de nós recordará para sempre.
Quando achávamos que já era tempo de desaceleração e de rescaldo não
imaginávamos que íamos dar início a outro tanto. Que loucura! Que momento!
De todos - e éramos muitos - fica um abraço ao Patrono
Fratello (dono do restaurante). A ele, que nos instigou e incendiou sem freio,
ficámos a dever a diferença entre um jantar porreiro e um jantar memorável.
#limoncellopertutti
Destino Anfield (XI)
Foi bom? Não. Quando a pergunta é desconcertante a
resposta é não. Porque a pergunta não pode ser se “foi bom”, porque foi muito
mais que isso.
Esta trasferta fica para a história. Teve demasiados
momentos e cumplicidades.
Termino com um abraço a cada um dos 17 compagnon de route.
Que qualidade meus amigos. Que qualidade.
Foi bom? Não. Não sei o que foi. Ainda estou a digerir.
Mas uma coisa eu sei.
Eu quero o PORTO campeão!
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