terça-feira, 17 de novembro de 2020

Regionalização (VII)

A ideia da regionalização serve muito – ou também – para promover uma afectação mais equilibrada (e solidária, e justa, e diferente) dos recursos do Estado. É uma espécie de antídoto para essa falácia que vem sendo o «efeito spill over» que tudo (ou quase tudo) justifica nos lugares de sempre.

Sempre disse – e digo – que não vejo no Porto (proponho o exemplo do Porto para que não me falte autoridade) grande vantagem. Não é o Porto que terá «mais direitos e mais investimentos». É por tanto país, de norte a sul, e passando (muito sobretudo passando) pelo interior. Se quiserem uma prova de como falo de coração aberto, eu gostava até que a capital da região Norte fosse em Viana do Castelo ou em Vila Real.

Regionalização (VI)

Volta e meia dou por mim a pensar nas razões que me animam em favor da regionalização.

Há o lado da reacção – do tipo «murro na mesa» – em que se milita na mudança pela mudança (dê-se a vez à regionalização).
Há depois o lado empírico. Seja na educação e suas infraestruturas, seja na segurança, nos agentes policiais e seus equipamentos, seja no ambiente, seja na habitação, seja ainda nos serviços públicos em geral. A percepção, por regra, de melhor serviço quando o prestador é local face ao prestador central, é combustível firme a favor do tal «murro na mesa».
Aqui no Porto, por exemplo, quando olho às escolas primárias, aos bairros municipais, à polícia municipal e seus equipamentos, em geral às vias municipais, e aos serviços públicos municipais e, depois, os confronto com as escolas públicas do Estado central, com os bairros geridos pelo INRH, com a PSP e seus equipamentos, com as estradas nacionais, fico sempre com a convicção de que se sente a distância dos responsáveis face aos problemas a cuidar. No fundo, sente-se a desresponsabilização que a distância promove (longe da vista, longe do coração, já diz o povo).

Regionalização (V)

Outra ideia muito batida (esta então é mesmo a mais batida) que se ergue sempre contra a regionalização é a de que tudo, no fundo, se resume à ambição de mais lugares, que hão-de ser preenchidos por boys bacocos, carreiristas e regionais (aqui regionais é adjectivo pejorativo).

Pondo de lado o paternalismo do argumento (que assenta na ideia de que localmente as pessoas não são competentes para escolher os seus representantes e nem sequer dispõem de quadros qualificados - o que é também um imenso desdém pelos milhares de autarcas que temos), há um gigantesco problema de falta de autoridade moral. É mesmo um argumento «cara de pau». Como se o modelo actual, com o Estado central, fosse uma referência na selecção de representantes – no Estado central é só gente da fina flor, patine da patine, quais «arquétipos da perfeição» (como se canta na música). Ele é ministros e secretários de estado, ele é toda uma administração central plena de perfis e currículos de excelência. Talvez um espelho serenasse o argumento. Mas também vos digo. Se é assim que veem as coisas, entre um bacoco e carreirista lá no Estado central e um bacoco e carreirista aqui da região eu não resisto à doutrina Roosevelt (may be he’s a son of a bitch, but he’s our son of a bitch, cito no original em inglês para disfarçar aqui o regionalista brejeiro).

Regionalização (IV)

Uma outra intentona lançada contra a regionalização é a da despesa, de que representará a multiplicação de instituições, de empregos públicos, de quadros (mais quadros) para lá dos que já temos no Estado central. E, por arrasto, lá vem o fantasma de mais orçamentos, mais recursos para o Estado (para as regiões, em concomitância com os inamovíveis do Estado central).

Eu, sinceramente, vejo a regionalização – e a organização administrativa que dela decorre – como uma nova organização do Estado e dos seus recursos. Só assim fará sentido. Só reduzindo os custos com o Estado central para os afectar à nova presença do Estado pelo país fora é que a regionalização é consequente. A ideia não é duplicar ou replicar o Estado central pelas regiões é, antes, substituir o Estado central por entidades mais próximas das pessoas e das suas necessidades justamente nas áreas em que essa proximidade faz sentido.
Se o receio do apetite pela despesa das regiões é um argumento – que é tão forte como o receio da resistência do Estado central em reduzir substancialmente a sua própria despesa (às tantas nem se dão conta de que talvez seja esse o lado mais forte do argumento) – eu sugiro que consagrem legalmente essa barreira. Façam-no na lei, na constituição, a lacre. Como quiserem. Institua-se a regra de que, no seu conjunto, o depois face ao antes não pode representar um aumento de despesa.
Claro que o Estado central se há-de reduzir substancialmente… e talvez seja esse o «argumento»…
E eu percebo.

Regionalização (III)

 O ónus da prova – esse pesado ónus que, inexplicavelmente, impende sobre quem vem sugerindo a regionalização – tem de ser enjeitado sem apelo nem agravo.

Passaram mais 20 anos desde a tão festejada rejeição da regionalização às mãos do anúncio das maravilhas da descentralização. Foram, no fundo, mais 20 anos de um Estado central e centralista, que gerou um país desequilibrado, em muitos lugares desertificado e sem autonomia administrativa. Passaram, portanto, 20 anos em que nada aconteceu, em que a descentralização não saiu dos discursos (ou se saiu não se sentiu), em que a organização administrativa vigente comprovadamente não serviu à coesão territorial e ao desenvolvimento equilibrado e justo do país como um todo.
Desculpem, mas os que são contra a regionalização é que têm a obrigação (e que obrigação!) de demonstrar que a solução que vivemos há 40 anos é boa. E, honestamente, devia haver algum pudor em oferecer a descentralização como panaceia dessa demonstração (para quem acabou de dispor de mais 20 anos, como querem que se acredite?).
Não. O ónus de demonstrar a bondade da proposta não é mesmo de quem quer mudar. O ónus é de quem enjeita a regionalização oferecendo em troca promessas estafadas e totalmente desacreditadas.

Regionalização (II)

 A ideia (de que falei no post anterior) de que quem defende a regionalização põe em causa a unidade do nosso querido Portugal – e que é tantas vezes ilustrada com um mapa de Portugal ostensivamente esquartejado – é tributária de tantas outras sem qualquer fundamento. Nós, pela unidade, vocês pela divisão de portugueses contra portugueses! O porquê desse binómio simplista é que é mais difícil de explicar.

Este tipo de simplismos e verdades (absolutas, claro, mas absolutamente por demonstrar) faz-me lembrar, por exemplo, aqueles que têm a presunção de achar que são eles (e não os demais) que representam as dores dos mais fracos e desprotegidos. Ou certas associações que se arrogam do exclusivo da solidariedade.
Não, meus amigos, às tantas é por um Portugal mais coeso e equilibrado que uns quantos (enganados, vamos ceder em benefício do argumento) propõem uma organização administrativa do Estado diferente da que temos. Mas no mínimo consintamos que, no plano dos propósitos, não há bons e maus.
Reconhecer a iniquidade do «centralismo» dos bons sentimentos talvez fosse um bom começo.

Regionalização (I)

O debate sobre a regionalização – que nunca se chega a materializar (o debate, entenda-se) – está invariavelmente condicionado por estereótipos e boutades que têm tanto de infantil quanto de frases feitas (são mais ou menos sinónimos, bem sei).

A ideia mais batida é a de que Portugal é uno, como quem diz que a regionalização representaria uma ameaça à unidade do Estado. Eu não sei ao que vem essa ideia. Nunca vi, nem subliminarmente, pretensões de independência ou de separatismo. Mas se a unidade se mede pela via administrativa, não percebo ao que vem a divisão por municípios e freguesias e, ainda menos, a «divisão» representada nas regiões da Madeira e dos Açores. Se é para garantir a unidade do País não havia qualquer circunscrição intermédia e acabava-se com o regabofe que é a ambição de mudar uma lâmpada sem autorização do secretário de estado da energia.
E – se quiserem em tom mais sério – talvez valesse a pena pensar que essa ameaça vem das vezes em que eu (como hoje) para tratar de uma licença industrial em Gondomar, me tive que fazer à estrada para reunir com o responsável de uma Direcção-Geral na Avenida da República em Lisboa (só para dar o exemplo desta semana, dispensando-me do da semana passada e do da próxima).

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O testemunho de Passos Coelho

Nem serão assim tantos os políticos que me surpreendem tão completamente (não sou imune aos preconceitos).
Passos Coelho terá sido um deles. Impressionou-me (impressionar é mesmo o verbo certo) na sua sobriedade e simplicidade.
Não é nada comum um primeiro-ministro (hoje ex-primeiro-ministro) tomar-se por tão comum, tão simples, tão normal.
Na vida do dia-a-dia em Massamá ou nas férias em Manta Rota. Na actividade profissional que, depois da ribalta, prosseguiu. E também (ou talvez sobretudo) na discreta vida com a sua mulher doente.
Sem alarido, com enorme dignidade, como deve ser.
Eu acho que lhe devemos agradecer este testemunho.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Oh Vasco!


Que sensação desconfortável de orfandade, Vasco.
Só me ocorre vernáculo e negação. E mais vernáculo.
Porra, Vasco!
Sim, vou tratar-te por tu, que me entraste na intimidade das leituras e das irritações (como é próprio da intimidade).
Tantos, por aí, costumam fulanizar no Miguel (o MEC) ou no Paulo (o Portas) as suas origens. Eu também por lá andei, mas nem por isso.
Foste tu, Vasco (o VPV). Foste tu. Foi pelas tuas crónicas, pela tua língua afiada e até azeda, pela tua síntese impossível (e irritante) que eu corri até ao quiosque (no tempo em que eu corria até ao quiosque, que hoje é raro e já nem a passo).
É que tu tinhas o que me desafiava. Até os teus complexos e presunções (e a Igreja era injustiçada e vítima da tua ignorância, que a tinhas!) eu gostava de te ler. Porque eu gosto de discordar e tu também me davas esse prazer. Da política, à história, do ressabiamento ao caricato. Guardo memória de tanto, pá. Era no papel que brilhavas. Mas esse brilho também era alimentado pelo contraste da tua expressão. Afundado no sofá de copo na mão e cigarro na boca. O verbo difícil e confuso. A distância da realidade (não esqueço aquele debate com o José Magalhães, contigo todo atrapalhado sobre o salário mínimo nacional). Chego a imaginar o Francisco Sá Carneiro a pensar várias vezes «que luxo ter este louco ao meu lado!». E foi um luxo, seguramente. Como, para mim, foram centenas das tuas crónicas, do teu olhar nada convencional, das tuas previsões desafiantes, da tua coragem desligada de respeitos humanos (o que é e não é um elogio).
Mas queres um elogio? Eu dou-to com sinceridade e em absoluta incredulidade (estou em negação). Deixaste rasto. Não foi vã esta tua passagem. Serão poucos os que me merecem este elogio.
Eu sei que estou a ser rude e bruto, pá. Mas só me ocorre vernáculo. Não, caraças (caraças posso escrever?)! Partiste mesmo?
Oh Vasco!