Há um fenómeno que me intriga e, em certa medida,
indispõe a respeito do modo como se institucionalizou olhar para o PSD, para a
sua autenticidade e os seus protagonistas. Digo para o PSD porque o fenómeno é
sobretudo dirigido ao PSD, ainda que o CDS também dele vá padecendo. É, em boa
verdade, um fenómeno que tem por destinatários os partidos à direita do PS.
Com estafada frequência ouvimos e lemos que o velho PSD,
partido social democrata, já não existe. Já existiu – em todo o seu cristalino
esplendor – mas terá desaparecido. Os representantes desse velho PSD também
dele terão desistido ou, infelizmente, já não estão entre nós. Aliás, o
fenómeno vem muito à tona em jeito de elogio póstumo – «era um verdadeiro
social democrata, amante da liberdade e que nunca se rendeu à deriva liberal»
(ou, na versão CDS, «era um dos últimos democrata cristãos»).
Nestes desabafos de frases feitas está implícito, muitas
vezes, um rasgado elogio a esse partido tão bom que desapareceu. É uma espécie
de partido equilibrado, socialmente galvanizado e reformista que, em
contraposição à deriva de que foi vítima, perseguia o bem comum. Os elogios são
tantos, tão rasgados e tão consensuais, que chego a questionar-me como foi que
se perdeu esse partido!
E o que é ainda mais intrigante e curioso é que, amiúde
(acho que é a primeira vez que escrevo «amiúde»), essas declarações de amor
pelo velho PSD nos são servidas por quem nunca se reviu no tal partido tão bom,
nunca nele votou nem votaria.
Este fenómeno anda de braço dado com a ideia de que as
preocupações sociais e a promoção do Estado social são um exclusivo da esquerda
e que à direita não lhe assiste mais essa causa (aliás, persegue uma agenda
de destruição do dito Estado social). A velha direita terá tido essas louváveis
preocupações, mesmo que, ao tempo, seja difícil encontrar esse reconhecimento.
A explicação para este fenómeno – lamento dizê-lo – não
abona especialmente a favor dos seus arautos. Por regra, tem na génese a ideia,
pouco democrática, de que os outros partidos à direita do PS se devem subjugar
às mesmas prioridades da esquerda. Ademais, essa subjugação não se pode sequer
esgotar na adesão às prioridades – elas devem ser perseguidas da mesma maneira,
com os mesmos métodos (sejam eles meramente panfletários ou não). E sempre com
a condescendência doutrinária de que a social democracia de Sá Carneiro ou a
democracia cristã de Amaro da Costa eram – essas sim – boas e respeitáveis (por
muito que ambos tenham sido combatidos pelos mesmos que condescendem).
Eu não quero convencer ninguém, por muito absurdo que
ache o fenómeno. Também me poupo a projectar um olhar crítico ao lado
«sinistro» (como se diz em italiano) do xadrez partidário. Mas talvez sugira
que concedam aos partidos à direita do PS a impureza própria das organizações
políticas, que exercem o poder e que se fazem das pessoas que, em cada momento,
querem participar. Já nem falo da certeza biológica de os protagonistas de hoje
serem filhos dos de ontem. Nem ouso invocar que uns terão sido formados por
outros. Eu só me insurjo contra o estigma dos impuros de hoje. Especialmente porque
baseada no mito. O dos puros.
#Escritório