- E então, cansado?
- O primeiro sentimento não é esse. Mas sim, cansado. Dorme-se
pouco. 24 de um lado, 25 do outro, como é suposto. Com a viagem pelo meio e
muitas horas à mesa.
- Mas não se esteve bem, não se comeu bem?
- Ah isso comeu. E bebeu. E bem. E muito. O que, por
falar em cansaço, também cansa.
- Mas todos juntos e bem dispostos?
- Todos juntos, claro. Bem dispostos? Acho que sim.
- Porquê esse acho?
- Meu amigo, a distância entre uma birra e uma gargalhada
é ténue. Tanto se peguilha como se abraça. De um minuto para o outro. E então
nestes dias sem rotinas ...
- Então não correu assim tão bem.
- Correu. E quanto mais dias passam mais certo é que
correu bem. Ninguém se lembra das pequenas birras. E todos se lembram dos
abraços e das gargalhadas. Nós e as crianças.
- Imagino a confusão!
- Imagina mas não te aflijas.
- Desculpa, só me aflige essa das birras.
- Não te aflijas. Referia-me às crianças. Que dão mais
sentido mas também cansam.
- Não sei se me revejo nessa ideia estafada de que as
crianças cansam.
- Sabes que com as crianças é tudo muito relativo.
Connosco também, é certo, mas o mundo das crianças é diferente.
- Como assim?
- Num mesmo dia – em qualquer dia – nós experimentamos
nas crianças as birras e as ternuras, os gestos comoventes e os impulsos
repugnantes, a serenidade e a impaciência. No Natal e nas festas em geral não é
diferente. Talvez seja até mais exagerado.
- Percebo.
- Se as crianças nos induzem ao que há de mais genuíno e
puro – e por isso, pela essência, chegamos mais facilmente ao que verdadeiramente
interessa – elas também nos consomem e nos desviam dessa essência. Ninguém,
cansado, perante uma birra, consegue pensar na maravilha do nascimento do
Menino …
- Mas as crianças não passam o dia todo em birras …
- Pois não. E não é desses momentos que nos recordamos
quando recuperamos as memórias destes dias. Pensamos no vinho que bebemos, nos
doces que nos marcaram, nas conversas que nos uniram, na alegria de todos, na
comunhão das saudades. E ficam-nos tantas outras fotografias. A dos presentes mais
certeiros e mais infelizes. As dos semblantes deslumbrados das crianças – outra
vez elas. A da gruta esculpida com arte e engenho para receber o Menino Jesus e
toda a parafernália que o circunda no majestoso presépio (que voltou a deslumbrar,
como se fosse a primeira vez). E mais, muito mais.
- Que sorte!
- Estás a ver? Já só me lembro do que correu bem, porque
é cansado que corre bem.
- Então essa expressão cândida e até beata do Santo Natal
não é um bocadinho forçada?
- Não. Não é. Um Santo Natal é isto mesmo. Santo não quer
dizer que seja perfeito. Santo não quer dizer que seja indolor e sem cansaço. E
sem birras. E sem presentes infelizes. E sem saudades. Não. Um Santo Natal é
esta quase misteriosa amálgama de momentos que, quando recordados, têm o
sentido próprio da família que se reúne. E insisto – as crianças cansam, não há
como negá-lo, mas tornam o Natal mais Santo.
- Olha, santo cansaço!
- É isso.
#Jardim
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