quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Mário Soares e eu

Sou um filho daquela marcante campanha presidencial de 1986. Cresci a cantar o «Prá Frente Portugal com Freitas do Amaral» por oposição ao «Soares é fixe». E senti aquela derrota eleitoral, à segunda volta e à tangente, como se de uma derrota do meu clube se tratasse. Na minha cabeça de criança empenhada tinham ganho os maus com um golo de penalti duvidoso nos descontos. Eram tempos ainda de ressaca revolucionária. E eu respirava um ambiente de facção que hoje compreendo, que terá sido quase inevitável, mas no qual não me revejo.
Com o tempo, com o distanciamento, com a maturidade (a pouca que a natureza me foi concedendo) desvaneceu-se aquela imagem simplista dos bons e dos maus. A política e a história sempre rivalizaram com o futebol na disputa pelo meu tempo de menino e adolescente. Sem esforço e sem mérito, tanto lia biografias políticas e programas eleitorais (programas eleitorais, imaginem!), como coleccionava cachecóis de clubes e bilhetes de jogos de futebol. Se no início os dois mundos até pareciam próximos, às primeiras leituras e aos primeiros pêlos na cara, comecei a duvidar, a relativizar e a contextualizar. Ainda com a voz a engrossar já conseguia valorizar politicamente o que antes diabolizara sem discussão. Reservei ao futebol a clubite que lhe é própria e ofereci-me à política com uma certa bonomia crítica e exigente. É desse exercício que nasce a minha «reconciliação» com Mário Soares, a quem logo reconheci uma rara capacidade para nos interpretar.
Não. Mário Soares não é essa figura impoluta e perfeita que muitos sustentarão. Tem de sobra episódios condenáveis. De facção, de traição e de jogo. E nunca foi tributário do meu voto. Mas foi demasiado importante num momento especialmente relevante e fundador do nosso regime. Não lhe devemos tudo, até porque não esteve sozinho. Mas à sua intuição, à sua coragem e insubordinação, e ao seu profundo amor à liberdade, ficámos a dever a nossa própria. Não é coisa pouca. Mas fico com a sensação que muito boa gente, porventura refém de uma certa «clubite de menino», ou não o sabe, ou não o reconhece ou não o valoriza. Mas devia.

#Escritório

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