Não tenho a mais pequena dúvida de que é boa e importante (até porque dela participo na primeira linha!) a unanimidade que grassa quanto à condenação dos casos de abusos sexuais sobre crianças que em muitos países e ao longo de várias décadas vêm acontecendo no seio da Igreja Católica.
Não há que escolher eufemismos. Não há como não dizer o óbvio. Não há como negar.
Os abusos sexuais sobre crianças à guarda da Igreja, por sacerdotes e outros clérigos ou leigos, os actos de encobrimento desses abusos por quem, em muitos casos, ocupa o mais alto cargo na hierarquia, o modo atabalhoado e hesitante como vários responsáveis da Igreja vêm gerindo as sucessivas denúncias, tudo isso, envergonha-me, entristece-me, revolta-me (e poderia continuar com mais sentimentos, todos genuínos e sinceros, culminando com um «enoja-me»).
É mesmo assim. Um verdadeiro nojo. Sem mas. Para mais invocando «o nome de Deus em vão» e pondo a nu o que já Frei Luís de Granada dizia (causa mais dano o lobo na pele de cordeiro que o lobo na pele de lobo).
Para quem, como eu, faz parte da Igreja o sentimento de revolta é ainda mais intenso (como é possível viver tão radicalmente nos antípodas da doutrina?)
Penso várias vezes no que poderá e deverá fazer quem, na Igreja Católica, perante este drama, esteja absolutamente de boa-fé, esteja firmemente empenhado em enfrentar o gravíssimo problema em todas as suas dimensões, e pretenda, sem hesitações, libertar a Igreja deste nojo e degredo embaraçante.
O que poderá e deverá fazer? O que poderão e deverão fazer um Papa, um Cardeal, um Bispo, um Padre, que se deparam com casos de abusos sexuais sobre crianças no seio da Igreja de que são responsáveis? Mesmo que sejam na sua maioria casos com dezenas de anos, com responsáveis já idosos e com vítimas já adultas. O que poderão e deverão fazer?
Não basta pedir perdão (até porque é um pedido «em nome de» e não por actos pessoais). Há que pedir sonoramente perdão, claro, mas concordo que não basta.
Impõe-se entregar os responsáveis, as provas, as explicações detalhadas (tudo!), às autoridades civis. Impõe-se tratar esses mesmos responsáveis no seio da justiça canónica sem quaisquer contemplações e sem arrimo em regras processuais e de termo (como será a invocação da prescrição). E impõe-se incluir nesses responsáveis os miseráveis protagonistas directos e os encobridores e cúmplices passivos. A razia tem de ser inequívoca não olhando a hierarquias e sem respeitar «poderes».
Haverá, depois (ou concomitantemente) que assumir as responsabilidades indemnizatórias (por mais incomensuráveis que sejam) perante as vítimas.
Dever-se-á fazer tudo isso e ainda assegurar regras claras para o presente imediato – de procedimentos, de organização, de formação – que obviem tanto quanto possível que o nojo se repita com a disseminação que hoje nos é revelada. O tempo em que o problema do padre pedófilo se resolvia mudando-o de paróquia, retirando-lhe a liderança de um seminário para o colocar na de um colégio noutro lugar, ou colocando-o nos serviços administrativos da diocese por uns tempos, acabou, não pode continuar e nunca deveria ter acontecido!
A Igreja é feita de homens e de mulheres, bem sabemos. A Igreja pressupõe que os homens e mulheres sejam livres. Livres para fazer o bem e para fazer o mal, livres para cumprir e para transgredir, livres para serem ou não serem santos (é esse o grande e difícil desafio). Na proposta da Igreja – na doutrina e nos Evangelhos – não há lugar para o nojo, para o abuso de crianças, para a exploração miserável dos frágeis. Mas essa proposta é dirigida – insisto – a homens e mulheres livres. E por isso, e desde que foi criada, na Igreja sempre medrou o bem e o mal (é uma «rede que apanha maus e bons peixes», onde há «joio no meio do trigo»). O que há-de distinguir a Igreja (para lá santidade dogmática que não é para aqui chamada) é que a liberdade como condição de pertença tem o reverso da responsabilidade. Seja no seio da própria Igreja seja perante «César». Que se cumpra a responsabilidade!
PS. Valham-nos dois sinais. O de que ainda nos impressionamos (e revoltamos e reagimos e não perdemos a sensibilidade) perante os abusos sexuais sobre crianças. E – porque não realçá-lo – o de que esta é a Igreja que todos podem criticar. Valha-nos essa liberdade (na e com a Igreja).
#Jardim
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