O desassossego maior nas viagens de comboio é-me
oferecido pela tensão dos companheiros de viagem (já por causa das coisas,
sempre que posso, escolho um lugar sem companhia!).
A incerteza dos vizinhos, ou mesmo a certeza dos vizinhos
incómodos, é demasiado perturbadora. Há de tudo. O hiperactivo, o ruidoso, o
indelicado, o picniqueiro, o «cheiroso» (sou especialmente sensível a este).
Tenho sempre presente a história de um amigo meu que
saído de um campo de férias - daqueles que nos insuflam de bons propósitos
espirituais - largou os jornais, as paisagens e o sono, para dar prioridade às
orações (com o ritmo do comboio, achou que fazia sentido o também ritmado
terço). Logo dirigiu as intenções do momento para um pedido de boa companhia
(ou pelo menos, que não fosse má). Ali pelos lados de Ermesinde (não sei se foi
exactamente em Ermesinde, mas apeteceu-me dar razão ao RAP) foi surpreendido
com a entrada de uma viajante que o deixou (estou a ler a expressão facial dele) sobressaltado (no bom sentido!).
A atenção deu lugar à indignação, contou-me. As malas que a dita viajante trazia eram tantas e aparentemente tão difíceis de manobrar que se viu em dificuldades no momento de as arrumar. Ao lado dela estacionou (literalmente) o revisor que ficou a assistir impávido e sereno ao esforço da viajante à volta da sua difícil bagagem. Ele (o meu amigo) nada podia fazer (para pena dele, quero acreditar), impedido que estava pela distância e pelos demais passageiros que preenchiam naquele momento o corredor central. Das pias orações passou aos maus sentimentos contra o revisor (que lhe custava e de que motivação precisava para ajudar com as malas?, desabafava). E quem acudiu acabou por ser uma senhora – daquelas solícitas e despachadas – que ou desimpedia a passagem ou viajava de pé.
Conformado, o meu sobressaltado amigo desligou-se entretanto do assunto, encostou-se para o banco do lado (não tinha companhia, felizmente!) e tentou regressar ao terço interrompido.
Para seu desassossego (mais um) foi novamente importunado. O lugar para que se havia estendido tinha dono, afinal. Ao toque no ombro deu um salto enérgico para libertar o espaço (e, se bem o conheço, terá soltado interiormente um calão qualquer à medida).
Já não sei se pelo cheiro, se pela voz, se por tudo. Quando lançou o olhar para confirmar quem lhe saíra em sortes naquela jornada de comboio percebeu, como nunca, a promessa divina da remuneração em dobro. Às suas orações por uma boa companhia foi correspondido com a viajante das malas. Não mais se retomaram as orações (ingrato, acusei-o eu). Muito menos cessou o desassossego da viagem. E no desembarque já não se repetiu a dificuldade com as malas (garantiu-me!)
Sim. Nas viagens de comboio não faltam desassossegos. Mas não é só dos maus ...
#Saladeestar
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