Havia alguma sensação de injustiça na sala. Mas todos
sabiam que era o dever – que no caso do António tinha mesmo muita força – a
sobrepor-se.
Ninguém o demovia daquela mania de ser digno, íntegro e
até desprendido. Podia ter ambições de carreira – que as tinha –, podia ter
projectos extraordinários a meio – que os tinha – e podia representar um
sobressalto financeiro na sua vida – que representava. Mas o dever e o exemplo
estavam e estiveram sempre acima de tudo.
Serviam-se os cafés, ainda se rapavam os pratos daquele
bolo de chocolate amanteigado, e antes que alguém o sugerisse, o António
ergue-se, tilinta o copo com a colher do café, e anuncia que pretende dirigir
umas palavras. Sem rodeios e sem falsas emoções diz de chofre: «fui eu!»
O silêncio toma conta da sala. Regressa a tensão e a
emoção que justificavam aquele encontro e que, durante a refeição se havia transitoriamente
esvaído.
«Fui eu», repete o António com a voz mais grave e dominada.
«Naquelas omissões, naquelas ordens, naquela
desorientação, estava eu inteiro.»
Todos olhavam entre si. A menina Cândida – a mais antiga
na organização – de olhos em vidro, baixava a cabeça. Aliás, todos baixavam.
Queriam, sem o revelar, evitar os olhares cruzados, pelo embaraço das lágrimas evidentemente
contidas.
«Sou eu o Director Geral», prossegue o António. «Fui eu
que escolhi os coordenadores. Fui eu que aceitei os vários chefes de equipa.
Fui eu que assumi as equipas e os colaboradores desta organização.»
Era conhecida e reconhecida a empatia do Director‑Geral com
os accionistas, o que tornava mais difícil aceitar o passo que o António se
preparava para dar.
«Os acontecimentos deste mês são gravíssimos – prosseguiu
o António. De mim nunca ouvirão o contrário. São mesmo muito graves» (havia uma
espécie de ordem surda, que ninguém sabia de onde vinha. Para não dizer nada, não qualificar, não sobrevalorizar e, sobretudo, não imputar).
Em tom grave, António quase grita. «Pouco importa que eu
não tivesse conhecimento da urgência na substituição das condutas de gás. Aquelas
vidas ceifadas no trágico acidente, estavam à minha responsabilidade última» (o
António sabia que pouco interessava que conhecesse ou não essas vidas em
concreto, que não lhe tivessem feito chegar os relatórios de manutenção e que tivesse
ou não avançado com um plano de modernização da estrutura. Ele sabia que um líder
não está à espera e tem de antecipar).
«Na semana seguinte foi o assalto às reservas das matérias-primas
mais valiosas. Sei da gravidade e sei medir o que representa para a reputação
da nossa organização» (o António sabia que a falha do sistema de vídeo
vigilância e das equipas de contínuos não podia esbarrar numa comissão de
inquérito e na mera reestruturação das estruturas intermédias).
«E, como se não bastasse, a fuga de informação sobre os
novos produtos a apresentar no mercado, foi um privilégio para uns em
detrimento de outros que eu não posso aceitar e com o qual não me posso
conformar. É a transparência e a certeza de imparcialidade que fica em cheque»
(o António sabia que o mercado sempre reconhecera a lisura e imparcialidade da organização
e, portanto, no dia em que essa confiança fosse abalada e – pior – no dia em
que não houvesse uma reacção drástica a um evento grave, seria o princípio do
fim).
O António, concluiu: «agradeço a confiança que em mim depositaram.
Peço desculpa às vítimas e às suas famílias, com quem comungo do luto e da dor.
Peço desculpa à organização e aos accionistas pela enorme crise de confiança e
de reputação de que padece a organização. Quero concorrer para o urgente resgate
dessa confiança e reputação. E por isso assumo – porque é assim que devem fazer
os responsáveis máximos – fui eu. E como fui eu, apresentei a minha demissão. Há
momentos que não se fazem de empatias. E muito menos de índices de popularidade.
A dignidade e a responsabilidade às vezes doem. E desta vez doeram a mim. Mas
este é o momento para duas palavras apenas. Repito uma delas e acrescento a outra.
Repito: Desculpa. Acrescento: Obrigado».
Desta vez não houve o burburim de fim de jantar. Não houve
sequer o som espalhado das cadeiras a arrastar. Ninguém se levantou. Ninguém
disse nada. O silêncio foi quase sepulcral, não fora a menina Cândida precisar
de assuar o nariz da comoção. A dignidade e o exemplo do António, tão bem revelado
naquele jantar, ficou na retina por muitos anos.
Já não há Antónios assim. Nem Constanças. Nem José
Albertos. Nem Tiagos.
#Escritório
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