segunda-feira, 3 de julho de 2017

O jantar de despedida

Havia alguma sensação de injustiça na sala. Mas todos sabiam que era o dever – que no caso do António tinha mesmo muita força – a sobrepor-se.
Ninguém o demovia daquela mania de ser digno, íntegro e até desprendido. Podia ter ambições de carreira – que as tinha –, podia ter projectos extraordinários a meio – que os tinha – e podia representar um sobressalto financeiro na sua vida – que representava. Mas o dever e o exemplo estavam e estiveram sempre acima de tudo.

Serviam-se os cafés, ainda se rapavam os pratos daquele bolo de chocolate amanteigado, e antes que alguém o sugerisse, o António ergue-se, tilinta o copo com a colher do café, e anuncia que pretende dirigir umas palavras. Sem rodeios e sem falsas emoções diz de chofre: «fui eu!»
O silêncio toma conta da sala. Regressa a tensão e a emoção que justificavam aquele encontro e que, durante a refeição se havia transitoriamente esvaído.
«Fui eu», repete o António com a voz mais grave e dominada.
«Naquelas omissões, naquelas ordens, naquela desorientação, estava eu inteiro.»

Todos olhavam entre si. A menina Cândida – a mais antiga na organização – de olhos em vidro, baixava a cabeça. Aliás, todos baixavam. Queriam, sem o revelar, evitar os olhares cruzados, pelo embaraço das lágrimas evidentemente contidas.
«Sou eu o Director Geral», prossegue o António. «Fui eu que escolhi os coordenadores. Fui eu que aceitei os vários chefes de equipa. Fui eu que assumi as equipas e os colaboradores desta organização.»
Era conhecida e reconhecida a empatia do Director‑Geral com os accionistas, o que tornava mais difícil aceitar o passo que o António se preparava para dar.
«Os acontecimentos deste mês são gravíssimos – prosseguiu o António. De mim nunca ouvirão o contrário. São mesmo muito graves» (havia uma espécie de ordem surda, que ninguém sabia de onde vinha. Para não dizer nada, não qualificar, não sobrevalorizar e, sobretudo, não imputar).
Em tom grave, António quase grita. «Pouco importa que eu não tivesse conhecimento da urgência na substituição das condutas de gás. Aquelas vidas ceifadas no trágico acidente, estavam à minha responsabilidade última» (o António sabia que pouco interessava que conhecesse ou não essas vidas em concreto, que não lhe tivessem feito chegar os relatórios de manutenção e que tivesse ou não avançado com um plano de modernização da estrutura. Ele sabia que um líder não está à espera e tem de antecipar).
«Na semana seguinte foi o assalto às reservas das matérias-primas mais valiosas. Sei da gravidade e sei medir o que representa para a reputação da nossa organização» (o António sabia que a falha do sistema de vídeo vigilância e das equipas de contínuos não podia esbarrar numa comissão de inquérito e na mera reestruturação das estruturas intermédias).
«E, como se não bastasse, a fuga de informação sobre os novos produtos a apresentar no mercado, foi um privilégio para uns em detrimento de outros que eu não posso aceitar e com o qual não me posso conformar. É a transparência e a certeza de imparcialidade que fica em cheque» (o António sabia que o mercado sempre reconhecera a lisura e imparcialidade da organização e, portanto, no dia em que essa confiança fosse abalada e – pior – no dia em que não houvesse uma reacção drástica a um evento grave, seria o princípio do fim).

O António, concluiu: «agradeço a confiança que em mim depositaram. Peço desculpa às vítimas e às suas famílias, com quem comungo do luto e da dor. Peço desculpa à organização e aos accionistas pela enorme crise de confiança e de reputação de que padece a organização. Quero concorrer para o urgente resgate dessa confiança e reputação. E por isso assumo – porque é assim que devem fazer os responsáveis máximos – fui eu. E como fui eu, apresentei a minha demissão. Há momentos que não se fazem de empatias. E muito menos de índices de popularidade. A dignidade e a responsabilidade às vezes doem. E desta vez doeram a mim. Mas este é o momento para duas palavras apenas. Repito uma delas e acrescento a outra. Repito: Desculpa. Acrescento: Obrigado».

Desta vez não houve o burburim de fim de jantar. Não houve sequer o som espalhado das cadeiras a arrastar. Ninguém se levantou. Ninguém disse nada. O silêncio foi quase sepulcral, não fora a menina Cândida precisar de assuar o nariz da comoção. A dignidade e o exemplo do António, tão bem revelado naquele jantar, ficou na retina por muitos anos.

Já não há Antónios assim. Nem Constanças. Nem José Albertos. Nem Tiagos.

#Escritório

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