sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Bolo Rei do próximo ano tem que ser bom!


Quando era criança olhava para o mundo dos adultos com dois sentimentos predominantes. A inveja - sempre a tão humana inveja que nos corrompe desde tenra idade. E a oposição (já explicarei melhor o que é isto da oposição - uma espécie de mistura de espanto, desprezo e incompreensão).

A inveja é fácil de explicar. Qualquer criança projecta nos adultos o poder para fazer o que apetece, a ideia de que ninguém manda neles, e uma carteira sem fundo que permite cumprir todos os desejos. E era essa inocente inveja que experimentava quando tinha de ir para a cama contrariado ou quando me negavam a bola de Berlim que me sorria sedutoramente todos os dias no bar da escola. Ou quando me impediam de viver o sonho de ir à Disneyworld (ainda cresci sem a Disneyland Paris).

A oposição é mais óbvia do que parece. As crianças crescem na oposição. Vêem os pais presos ao telejornal e àqueles «programas de conversa» e pensam «como é possível gostarem de ver aquilo em vez de bonecos?» (eu sempre chamei bonecos aos desenhos animados). Olham para os gostos gastronómicos dos adultos e não compreendem, ficam espantados, senão mesmo com alguma repulsa. Costuma ser assim com a salada. Às vezes com a sopa (os meus esperançosos filhos perguntam sempre «hoje há sopa?», sabendo que há e que a vão ter de comer irremediavelmente). Os frutos secos. O vinho e a cerveja. O café. Os doces mais rebuscados, como a chila ou as trouxas de ovos. A estes gostos incompreensíveis, as crianças opõem os de sempre. Batatas fritas. Salsichas, hambúrgueres e pizzas. Chocolate (ora branco, ora preto). Sumos e coca-cola (esta para os que desde tenra idade convivem bem com as «bebidas de picos»). No Natal, o símbolo maior era o Bolo Rei. O Bolo Rei sempre foi coisa de adultos, para o qual qualquer criança olhava com desprezo e incompreensão. Só seduzia pelo aspecto colorido, pelo cheiro a bolo e pela lotaria do brinde (que, lamentavelmente, temo ter desaparecido). Nunca para comer!
E podia dar mais exemplos da oposição das crianças aos adultos, tantas eram (são) as incompreensões, o desprezo e até às vezes nojo (estejam descansados que vos pouparei ao confronto com o modo como as crianças inocentes olham para a descoberta dos «afectos» entre adultos). Fico-me pelo Bolo Rei.

À medida que vamos crescendo descobrimos, primeiro, que a inveja - aquela inveja - era verdadeiramente infantil. E ainda bem! Imagino os monstros que seriamos se vivêssemos como se ninguém mandasse em nós, como se tivéssemos uma carteira sem fundo e como se pudéssemos atender a todos os nossos desejos (e Deus sabe quão infantis ainda são alguns deles).

E deparamo-nos, depois, com a progressiva adesão aos gostos a que outrora nos opúnhamos. Começamos a gostar de estar informados - e vamos parando no telejornal. Já não vivemos sem uma boa sopa ou uma salada, por muito simples que seja a refeição. Preferimos um bom vinho a qualquer sumo (ainda que nutramos um carinho especial pelo tang). Não passamos sem o café, começamos a afeiçoar-nos à gastronomia mais complexa e por aí fora.

A determinada altura já somos nós que nos esforçamos por entrar nesse mundo de prazeres. Forçamos os primeiros goles de vinho – porque não gostar de vinho, como de cerveja ou de café, é socialmente inaceitável e não há quem não prefira pertencer ao grupo dos comuns, por muita personalidade que tenha ou goste de exibir. E, por isso, forçamos muitas mais coisas. Algumas delas directamente fundadas na nossa tradição familiar. O bolo, o prato, o programa, de casa dos avós, que os tios e os pais sempre gostaram, mas que não compreendíamos ou desprezávamos. Agora é a nossa vez de gostar. E queremos mesmo gostar para que o nosso testemunho esbarre hoje na incompreensão dos nossos filhos para morar amanhã, outra vez, no gosto ou no esforço da perpetuação dos costumes familiares.

Tenho que confessar que ainda vivo nalguma oposição. Não em tudo, claro. Mas nesta época de Natal, Ano Novo e Reis, sinto-me refém da oposição. Eu gostava de gostar de muitos dos doces de Natal, mas não consigo. Não é das rabanadas, que dessas sempre gostei. É desse mundo das frutas cristalizadas e do seu maior ícone que é o Bolo Rei.

Não consigo. Ainda não consegui. Mas eu gostava mesmo de gostar de Bolo Rei. Já não vai ser este ano.

#Saladeestar
#Cozinha

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