segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Bom velho ano novo?*


Neste ano em especial (mas por nenhuma razão em especial) dei por mim a meditar sobre a passagem de ano, sobre essa ideia de boas entradas que encomendamos uns aos outros, sempre iluminados pela novidade de um ano que começa. «Bom ano novo!», ouvimos e dizemos. E, de quando em vez, lá repescamos esse dito popular do «ano novo, vida nova!», como expressão de incentivo à mudança a reboque do ano que se inicia.

Mas será mesmo assim? A resposta faltou-me, confesso, ao ver o olhar atónito dos meus filhos pequenos perante o momento bizarro da passagem da meia noite em que toda a gente comemorava, se abraçava e saudava «sem razão nenhuma». E eles tinham razão (as crianças têm sempre, outra expressão popular…). Não se passava nada, nada acontecera, era (é) simplesmente uma convenção entre adultos. Como tantas outras.

Fiquei preso à ideia de convenção «entre adultos» e rapidamente me dei conta de como não faltam pretextos que geram o desafio romântico da vida nova, do novo começo, ou, como se diz em linguagem teológica, da epifania (temos o novo ano civil, mas também o ano judicial, o ano académico, a época desportiva, a nova coleção, etc.). Concluí, com algum desencanto, como grassa a banalização do apelo e, pior, como é comprovada e frequentemente infrutífero.

A «vida nova» – perigosamente sugerida em confronto com a velha – não é, por regra, mais do que as mil e uma declarações não sérias (quantas vezes segredadas ou simplesmente desejadas na intimidade) mas que, num determinado momento (por uma efeméride convencionada) se proclamam em uníssono e colectivamente ao som das badaladas da meia noite (e nos dias que se seguem). Uma espécie de amanhã «começo a dieta», ou «começo a correr» ou «começo a ler», mas que todos dizem uns aos outros, alto e bom som. É, no fundo, um gracejo do momento, um jogo de palavras.

Se os pontos de melhoria se mantêm inamovíveis, talqualmente nos anos anteriores, fica a ideia de que estamos reféns do ano velho (no seu sentido figurado e pejorativo) e nada permeáveis ao ano novo e à sua «vida nova». E aí sim, temos um problema.

Um primeiro problema – cheguei agora ao ponto das ilações da meditação que me ocupou – é que essa «vida nova», que até pode ter expressão séria (um «vou casar», ou «acabar o curso», ou «ser pai»), não se constrói do nada, não aparece de repente, não brota à 12.ª badalada. A vida nova vem com a velha, onde estão os nossos (pais, irmãos, filhos, amigos, colegas), onde moram os defeitos e as virtudes que nos condicionam, onde reza a história do que fizemos e prometemos fazer. Onde estão – numa palavra – as nossas circunstâncias que não são, nem devem ser, descartáveis. E por isso, para lá do registo não sério e ligeiro, não há «vida nova» sem a velha. Nem «vida nova» como reverso da velha.

Um outro problema é o da credibilidade. Neste ano da graça de 2020 (impressionante como já estamos em 2020!) vivemos um ano novo – e preparamo-nos para a «vida nova» – à imagem de 2019, 2018, 2017 e por aí fora. Prometemos e propusemo-nos, nos mesmos exactos termos, há um ano, como há dois ou há três. E já então nos deparávamos com as promessas firmes, seríssimas e definitivas da «vida nova». O ano novo afinal foi velho …

O terceiro problema (digo problema, porque neste em particular vejo mesmo um problema) é o da constância dos pontos de melhoria. O desafio do novo ano, seja lá qual for a convenção que o suscita, é pertinente – porque é pertinente o anseio de corrigirmos os erros cometidos, de melhorarmos os resultados, de alcançarmos metas mais ambiciosas. Já perde pertinência se o desafio for, em boa verdade, requentado. É que já não será (apenas) um problema de credibilidade. Se os pontos de melhoria se mantêm inamovíveis, talqualmente nos anos anteriores, fica a ideia de que estamos reféns do ano velho (no seu sentido figurado e pejorativo) e nada permeáveis ao ano novo e à sua «vida nova». E aí sim, temos um problema.

Haverá domínios onde o diagnóstico requentado é mais estafado. O da justiça será um deles (e estamos também às portas dessa outra convenção que é o «novo ano judicial» em que brilharão os chavões das pendências nos tribunais, da celeridade processual ou da falta de meios de investigação). O das finanças públicas será outro (e está aí a discussão de sempre sobre o novo Orçamento do Estado e os disfarçados aumentos de impostos). O da saúde talvez tenha ganho protagonismo (com os problemas das listas de espera, das urgências no limite, e da falta de médicos no SNS). E o da educação também (apesar do ano novo já vir de Setembro, onde faltam auxiliares e grassa a tensão entre professores, alunos e encarregados de educação).

Mas se há domínio onde é urgente uma vida nova (a partir da velha, claro!), esse é o pessoal. Porque é no dia em que esse «ano novo vida nova!» – esses «amanhã começo a dieta», ou «começo a correr» ou «começo a ler» – deixar de se traduzir em declarações não sérias, meros jogos de palavras, frutos de convenção, e passar a decorrer de propósitos firmes e sérios, que aqueles problemas cedem. Esses mesmos - os da credibilidade e dos diagnósticos requentados. Há-de começar na intimidade e no domínio pessoal, pois se assim for chegará aos outros (à justiça, à saúde, à educação, e por aí fora).

A ver se para o ano os diagnósticos não são requentados. Por outras palavras, que 2020 não seja um velho ano novo.
Bom ano de 2020!

*Texto escrito e publicado no Ponto SJ (www.pontosj.pt)

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